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O teu discurso

Houve um tempo em que os editores, além de publicar livros, preparavam, em certas ocasiões, plaquettes, como esta intitulada ALGOL em que pediam aos poetas que escolhessem treze inéditos, como foi o caso, para uma tiragem numerada especial.
Arrumando papéis encontrei uma dessas plaquettes, de 1978, com um desenho do Tóssan, e treze poemas lá dentro de que escolhi um, para um amigo.
Foi inspirado no desenho de um cacto japonês da Lourdes de Castro, com a sua flôr única, que ofereci um dia ao meu filho Miguel. É ele que tem o quadro, em casa, eu tenho o poema aqui:
O Teu Discurso

O que dirias
perante a flôr do cacto japonês?
Que é flôr
e que o ser flôr te perturba
e mais ainda
só florescer uma vez

Enviei o poema a um amigo que já me tinha dito que não era leitor de poesia. Não sei se fiz bem. Sinto que tenho de explicar:
Foi da imagem do quadro que o poema surgiu, como interrogação, precisamente para alguém, não de hoje, mas desses anos antigos em que também um amigo não lia poesia. E julgo que até hoje não terá lido o poema.
O poema, se não fosse ampliado em vários versos, podia ser um condensado Haiku:
O que dirias
perante a flôr do cacto japonês?
Que é flôr e que o ser flôr te perturba
e mais ainda só florescer uma vez

Aqui, como no quadro, toda a reacção se concentra na imagem da flôr, que só floresce uma vez.
A sua beleza reside nessa estranha qualidade, de ser irrepetível o seu florescimento. Flôr de tão grande efemeridade que me leva até ao ideal da Flôr Azul, de Novalis, da busca sem fim a que se entrega, como quem se entrega a um grande amor, impossível.
Revela então algum segredo de amor, este pequeno poema? Por que razão a flôr referida perturba? Porque a emoção que desperta, ao ser contemplada, é próxima de alguma evocação amorosa? Na pergunta inicial : ” o que dirias” deixa-se adivinhar que o alguém, o outro é uma presença-ausente.
Presença na evocação, ausência na realidade, já que a resposta é imaginada por quem pergunta, e não por quem poderia ter respondido, se ali estivesse presente, com o seu “discurso”.

De Novalis, no século XVIII, com a sua flôr azul, uma utopia romântica de um Éden nunca encontrável, podíamos recuar até aos belos versos da Princesa Shikishi, do século XII, no seu Colar de Contas (String of Beads na tradução inglesa). É uma bela colecção de melancólicas reflexões que atravessam as estações, da Primavera e Verão ao Outono e Inverno, como mandavam as regras da composição poética, nelas surgindo ora flores, anónimas, ora o florescer das cerejas, das ameixas e do perfume que ficava no ar, durante as noites de lágrimas e de insónias. Em todos os versos a marca da saudade, da ausência:
” Quem dera que houvesse outros meios de consolação além de flores: friamente caem,
friamente observo” ( p.35).
Abrindo o Dicionário de Símbolos da Robert Laffont, que uso desde que em Paris, em 1971 um erudito junguiano mo aconselhou, vejo que na entrada de Fleur, há várias indicações para ver outras, como crisântemo, iris, lis, lotus, orquídea, rosa, girassol.
Cada uma com o seu simbolismo próprio, arcaico, ligado a antigas culturas e civilizações.
Pela sua forma em todas elas o que se acentua é o princípio passivo, o feminino, que o cálice da flôr sugere, como uma taça (mas não chegarei por aqui à taça do Graal, seria demasiado longo o excurso), um receptáculo da actividade celeste do orvalho, ou da chuva. Na flôr se reúnem os dois elementos da terra e da água, e no redondo do cálice a fecundidade que propiciam.
São João da Cruz vê na flôr a sublimidade do Espírito, já Novalis procurava um estado de primordial e perpétua pureza da infância (que depois se perdia).
Para ficarmos mais perto da bela Shikishi, prefiro, neste caso do cacto japonês, buscar antes o simbolismo taoísta da Flôr de Ouro, de Lu Tsou, tratado chinês de alquimia em que se descrevem as fases, ou os caminhos, para obter um mesmo estado se sublimação espiritual, que a imagem do florir único, em momento único também, representa: o florescer é resultado de uma alquimia interior, união da essência (tsing) e do sopro (k’i), dos elementos água e fogo. A flôr torna-se assim uma espécie de Elixir de vida, o seu florescer o regresso ao centro, à unidade, à energia primordial.

Já nas culturas dos Mayas e dos Aztecas, para além de se representarem nas flores o ornamento, a arte, o prazer dos deuses e dos homens, uma outra função lhes era atribuída: a descrição das fases da história cosmogónica, e dos acontecimentos de vida, ordenação dos tempos, (os meses, as estações) renascimento, morte, descritos nos hieróglifos.
Mas aqui já estamos longe do nosso cacto japonês e do quadro que levou, na contemplação, à escrita do momento.
Um poema é o que é: uma deriva, consciente ou inconsciente, pela subtarrâneo das palavras, também elas florescendo uma vez.

 

Yvette Centeno
Agosto, 2017
Blog Simbologia e Alquimia

Foto de Manuel Rosário

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Escrito por

Nasceu em Lisboa, é casada, tem quatro filhos. Cresceu numa casa onde havia livros. Leu sempre, leu muito, de todas as maneiras. Doutorou-se em Literatura Alemã, mas interessou-se sempre por História das Ideias, História de Arte e Literatura Comparada. É Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde criou os primeiros cursos de Tradução Literária. Tem obra de ficção, poesia, teatro e ensaio publicada em várias línguas. Quanto à música, as preferências andam pelo jazz, Mozart e Wagner… Foi recentemente distinguida com a Medalha de Honra do Autor Cooperante pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).

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Últimos Comentários
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    Belo e iluminador! Obrigado!