De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Atenas ou Jerusalém?

(Fragmento de uma entrevista biográfica que será em breve editada em livro)

É pessimista?

Há sempre coisas extraordinárias e não sou pessimista nem optimista. O que é que vai acontecer? Ninguém sabe. Passei por muitas tragédias, sou contemporâneo da Guerra Civil de Espanha, da Segunda Guerra Mundial, da mortandade pela tuberculose, de várias crises económicas, de cataclismos. Assisti a tudo e cá estou. É impossível prever o futuro. Nem as cartomantes, nem os futurologistas conseguem.

É impossível fazer previsões? E tirar lições para evitar os mesmos erros?

É possível observar, analisar, tentar compreender. Mas será possível tirar lições para não repetir os mesmos erros? Santayana disse que “Quem não conhece a História está condenado a repeti-la” e Mark Twain, mais prudente, escreveu: “A História não se repete, mas rima”. Não sei.

É um observador isento?

Observador atento, sim. E também protagonista.

Então não podemos deixar de falar sobre esta pandemia que o mundo está a viver….

…e que nos apanhou quando esta entrevista estava a chegar ao fim! Lá está: quem é que previa isto, agora e desta maneira, com as consequências terríveis que está a ter em todo o mundo? E quem é capaz de prever como isto terminará?

Exactamente. O que é que pensa disto?

Entre os médicos bem informados, sabia-se há muito tempo que, mais cedo ou mais tarde, iria aparecer uma pandemia deste género. Costumávamos dizer: “Enquanto andamos todos muito entretidos na nossa vidinha, os vírus estão sempre a trabalhar, a sofrer mutações e qualquer dia dão o salto”. Só não se sabia nem quando, nem como. Mas a maior parte das pessoas não imaginava que isto pudesse acontecer. Havia acerca disto uma certa arrogância ignorante que levava a pensar que éramos donos do mundo e que a ciência e a tecnologia eram capazes de resolver tudo.

E não é assim…

É muito curioso comparar esta pandemia com a pneumónica que, há precisamente um século, matou, em todo o mundo, entre 50 e 100 milhões de pessoas, ninguém sabe ao certo. Na altura não foi possível identificar a causa, porque pouco se sabia acerca dos vírus e, ventiladores, era coisa que não existia. Aconselhou-se, tal como agora, o uso de máscaras, higiene das mãos e distanciamento social, além do quinino e de gargarejos mentolados. O vírus varreu o mundo e matou milhões de pessoas. Agora conhecemos o vírus, tirámos-lhe a fotografia, sabemos como entra nas células e se multiplica, mas estamos na mesma: não conseguimos evitar a sua propagação e o seu efeito letal. Como temos serviços de saúde e ventiladores, deparamo-nos com uma escolha difícil: ou se “achata” a curva de casos infectados para poder tratar os que precisam, ou se deixa crescer a curva para o vírus fazer o seu trabalho.

É uma decisão difícil.

No primeiro caso talvez morra menos gente, mas o vírus vai andar por cá mais tempo porque tem de infectar 60% da população e os efeitos sobre a economia poderão ser catastróficos e mais devastadores do que a própria pandemia. No segundo caso talvez morra muita gente em pouco tempo porque não há ventiladores para todos, mas a economia resistirá melhor. É uma escolha difícil porque ainda sabemos muito pouco sobre este vírus imprevisível e estuporado: quantas pessoas matará? que mutações vai sofrer? Ainda é tudo um mistério que veio revelar a enorme fragilidade da espécie humana. Temos de esperar por uma vacina ou por medicamentos eficazes e não sabemos quando é que isso acontecerá. Daqui a um ano? Mais? Nunca? Mas não podemos esperar muito tempo, senão a humanidade corre o risco de voltar à idade da pedra lascada.

Que transformações pensa que esta situação poderá trazer à Medicina, à relação médico doente e ao mundo em geral?

Isto está a ser uma catástrofe à escala mundial e ainda estamos nos primeiros meses. O que aí vem em termos sociais, políticos, económicos, não é imaginável. Para a medicina vai trazer muitos conhecimentos e, para os médicos, prestígio pela competência e pela coragem que têm revelado. É uma recuperação bem merecida da sua imagem. Dois aspectos devem ser realçados. O primeiro é o desaparecimento das medicinas alternativas: quando a situação começou a apertar, foram os médicos, e não os “alternativos”, a dar a cara, a fornecer estudos epidemiológicos e conhecimentos, e a ocupar, com os outros profissionais de saúde, a primeira linha no tratamento dos doentes, com os riscos que isso envolve.

E o segundo aspecto?

Um outro aspecto é o efeito da Covid 19 sobre o acto médico. As máscaras, o distanciamento obrigatório, as desinfecções, o receio de contágio – tudo isso veio retirar à relação médico-doente muito do que ela tem de essencial, ou seja, a privacidade, a proximidade, o contacto, o tempo para ouvir, ajudar, aconselhar. Esperemos que tudo isto possa em breve ser recuperado para que o acto médico não seja, como aliás já começava a ser, um simples acto técnico ou burocrático.

Que reflexões lhe tem proporcionado esta situação?

Para mim há dois aspectos curiosos. O primeiro é que, sendo ateu, não me é fácil perceber como se abate sobre a Humanidade uma tragédia destas. É fruto de uma vontade, de uma decisão? É simplesmente um facto aleatório? Será um aviso da mãe-natureza ou de um Deus judaico-cristão que nos diz “vocês andavam a portar-se mal, agora tomem lá para aprenderem”, tal como aconteceu em Sodoma e Gomorra? A verdade é que bastou um mês de confinamento para corrigir as alterações do ambiente e do clima, actuar sobre a demografia, acabar com o turismo fútil, diminuir os acidentes de viação e a afluência às urgências hospitalares, correr com os comentadores de futebol das televisões, diminuir o consumo de sardinha nos Santos Populares. Temos agora cidades silenciosas e despoluídas, onde se ouve o canto das aves. Os aviões estão em terra e já não faz sentido discutir onde será construído o próximo aeroporto. Mas pensar que isto foi fruto de uma vontade, é admitir que existe uma entidade superior que, como um mestre-escola, nos castiga e nos mostra qual é o caminho a seguir. Não tínhamos sido avisados? Não estava tudo no Apocalipse de São João com os seus cavaleiros que trarão a peste, a fome, a guerra e a morte?

É uma visão curiosa…

… mas inaceitável para quem pensa com eu. O que será então isto? É simplesmente a natureza a funcionar? É um vírus dos morcegos que encontrou condições para saltar cá para fora e nos infectou? Apenas isto, sem mais explicações? Mas, afinal, não é esta pergunta sem resposta que se coloca em relação à nossa própria morte?

Sem dúvida.

Vamos então ao segundo aspecto. A que é que se assistiu durante a pneumónica há um século? A Igreja veio a terreno aplacar a ira divina e pedir misericórdia. Saiu para a rua, organizou procissões, novenas e até as primeiras grandes peregrinações a Fátima. A Senhora terá mesmo dito aos pastorinhos que o seu Filho estava muito triste com os crimes, os maus costumes, os pecados, o comunismo na Rússia e deixou tudo isso explicado em vários segredos para revelar mais tarde. E agora, o que se passa? A hierarquia da Igreja pede aos fiéis que rezem, mas que fiquem em casa e obedeçam docilmente e sem discussão às instruções das autoridades de saúde, ou seja, à ciência. Primeiro está Atenas, depois Jerusalém; primeiro a razão, depois a fé. As imagens do Papa, sozinho, na Praça de São Pedro a dizer missa, ou o recinto de Fátima vazio, no dia 13 de Maio, são verdadeiramente impressionantes.

É verdade.

E mostram-nos também que alguma coisa brutal se passou no espaço de um século e que a Igreja já não é o que era. Perdeu autoridade moral com os casos de pedofilia? Rendeu-se às maravilhas da tecnologia? Racionalizou-se? Laicizou-se? Para mim, que sou ateu, tudo isto são sinais preocupantes dos tempos, porque penso que a fé continua a ser um elemento fundamental na vida de muita gente. Sem fé em Deus e esperança na salvação eterna, há muitas pessoas que não conseguem encontrar a paz e a tranquilidade de que necessitam para sobreviver. E é essa paz e essa esperança que procuram nas grandes manifestações religiosas. Sobretudo as pessoas que colocam o sobrenatural acima de tudo, para quem primeiro está Jerusalém e só depois Atenas. Como se vê, esta pandemia mostrou-nos, afinal, que o mundo está diferente. Mas como se sairá disto é, mais uma vez, uma incógnita.

António José de Barros Veloso
Junho, 2020

Foto de Manuel Rosário

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Escrito por

Barros Veloso, Médico Internista. Ex-Director de Serviço do Hospital dos Capuchos. Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. Co-Fundador da Sociedade Europeia de Medicina Interna. Presidente da Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC). Autor e co-autor de vários livros sobre azulejaria portuguesa, medicina e história do conhecimento científico. Músico de jazz.

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