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Se o meu prédio falasse

A Sagrada Família

Tenho uma vaga ideia que era às quintas-feiras que chegava. Ou não teria dia certo? Seria só uma vez por mês? É difícil navegar na neblina do tempo, mas na minha memória está ainda bem vivo o sobressalto que a estadia em nossa casa, por poucas horas que fossem, provocava não só em mim, criança de seis ou sete anos, como no ambiente familiar em geral. Os gestos tornavam-se mais contidos, as vozes baixavam de tom e surgia da parte dos adultos, uma intolerância súbita e aparentemente incompreensível para as minhas brincadeiras mais barulhentas e para as habituais correrias no corredor. As empregadas, ou criadas, como na altura se chamavam, ao passar em frente à porta daquele quarto, abrandavam o passo e baixavam a cabeça numa atitude simultaneamente de respeito e recolhimento. Era como se toda a casa ficasse de repente coberta com um enorme abafador debaixo do qual tudo se processava em surdina e numa espécie de câmara lenta. E assim que alguém se desviava desta conduta, ouvia-se logo a voz da minha avó, em tom de aviso: “Olhem que está cá hoje a Sagrada Família!”

A Dª Hortense e o Sr. Cruz

O oratório em madeira, com quarenta ou cinquenta centímetros de altura, cujas pequenas portas protegiam as figuras de S. José, Nossa Senhora e o Menino Jesus, era habitualmente entregue por um sacristão, o Sr. Lourenço, em casa dos nossos vizinhos de baixo, casal muito devoto e sem filhos, cuja vida se balizava essencialmente pelo trabalho e pela religião e que muito apreciava a companhia desta família sagrada. Mas, nas ausências ocasionais da Dª Hortense e do Sr. Cruz, o oratório era temporariamente depositado em nossa casa, à guarda da minha avó, que tinha por ele um respeito reverencial, resultante de medos ancestrais, superstições várias e alguma religião à mistura.
A Dª Hortense, mulher de meia idade, de aparência frágil e silhueta já um pouco curvada, não dispensava chapéu e luvas sempre que saía, nem que fosse só para fazer uma compra do outro lado da rua. Dona de casa irrepreensível, repartia o seu dia a dia pelos afazeres caseiros e pelas várias obras de caridade a que a sua fervorosa devoção a obrigava. O Sr. Cruz, homem duma integridade a toda a prova, responsável pela contabilidade duma importante seguradora, também nunca dispensava o chapéu, talvez para esconder uma calvície já bastante avançada. Apresentava-se invariavelmente de fato e gravata, sempre de colete, sapatos impecavelmente engraxados cujo ranger característico anunciava ao longe a sua presença. Homem trabalhador e honesto, marido dedicado, defensor dos valores tradicionais e frequentador da missa dominical, o Sr. Cruz tinha, no entanto, um dever sagrado que se sobrepunha a todos os outros: ouvir o relato dos jogos do Benfica ao domingo. Era essa a sua verdadeira religião. Por isso, quando a Dª Hortense se demorava mais na Igreja e o Sr. Cruz não respondia à campainha da porta, absorvido que estava pelo relato do futebol, o Sr. Lourenço via-se obrigado a deixar a Sagrada Família noutro andar do prédio.

Começava, geralmente, pelo andar mais baixo onde viviam, de um lado, a Dª Amélia e o Sr. Gomes, proprietários da padaria do prédio ao lado, e os seus dois netos, meus companheiros habituais de brincadeiras na rua e do outro, duas irmãs sexagenárias e solteironas, Noémia e Lobélia de seus nomes, mais conhecidas pelas “meninas do rés do chão”.

A Dª Amélia e o Sr. Gomes

Os donos da padaria trabalhavam dia e noite e eram pouco dados a devoções religiosas, para as quais, aliás, não lhes sobrava tempo. Tudo no Sr. Gomes, era branco, sempre enfarinhado dos cabelos aos sapatos. Nunca me lembro de o ver de outra maneira. Era ele que cozia o pão no forno a lenha da padaria. A Dª Amélia, de carrapito no alto da cabeça e elegante no seu vestido às bolas, abria a padaria por volta das cinco da manhã, atendia os fregueses e dirigia a saída das camionetas que saiam carregadas de pão. Raramente estavam em casa, mas lembro-me bem que quando queríamos pão fresco, baixávamos um saco de pano atado na ponta duma corda, até ao pátio das traseiras da padaria e, em troca, deliciávamo-nos com carcaças e papo secos acabadinhos de cozer. Aliás, este hábito de cordas para cima e para baixo com saquinhos e papelinhos, era muito comum nos prédios de Lisboa e o meu, felizmente, não fugia à regra. Todos os vizinhos se conheciam e esta era uma maneira prática de trocar pequenos objectos e recados, nos edifícios que não dispunham de elevador. Por vezes, na ponta da corda, estava também pendurado um anzol que permitia pescar as peças de roupa que, inadvertidamente, caíam nos entendais dos vizinhos de baixo.

As “meninas do rés do chão”

Das “meninas do rés do chão”, tenho uma ideia bastante vaga, até porque se mostravam pouco. Apenas as vislumbrava por trás dos vidros das janelas, quando afastavam ligeiramente as cortinas para espreitar quem passava na rua ou quem entrava e saia do prédio ou quando, por acaso, entreabriam uma nesga da porta para receber qualquer compra. Estavam invariavelmente vestidas de robe até aos pés, com os cabelos grisalhos em desalinho. As suas caras angulosas onde sobressaiam narizes afilados faziam apelo à minha fértil imaginação de criança que as identificava prontamente com as figuras mais tenebrosas das histórias infantis. A sua vida era um autêntico mistério. Escusado será dizer que só em desespero de causa é que o Sr. Lourenço se atrevia a bater a esta porta para deixar a Sagrada Família.

A Dª Elizabeth e o Sr. Coronel

No primeiro andar, por vezes tinha mais sorte, principalmente do lado esquerdo, onde viviam a Dª Elizabeth e o Sr. Coronel, casal já de uma certa idade, mas muito querido e apreciado por todos, devido à sua inegável simpatia e afabilidade. Apesar de não terem filhos, a casa estava sempre cheia de amigos e afilhados de todas as idades e condição social que vinham frequentemente almoçar ou simplesmente tomar chá com os padrinhos. As refeições eram sempre servidas em porcelana da Vista Alegre, por criadas de farda e crista a quem a Dª Elizabeth tinha ensinado todas as regras de bem receber. As animadas conversas do Sr. Coronel eram, porém, invariavelmente interrompidas por inadiáveis bombadas de “Dyspne-Inhal” para aliviar a sua respiração ofegante, resultante dos gases de cloro da Primeira Grande Guerra.
Foi em casa deste generoso casal que deu pela primeira vez entrada no meu prédio um aparelho de televisão que veio espicaçar a curiosidade dos vizinhos e fazer as delícias dalgumas das crianças entre as quais eu e o meu irmão. A tranquilidade dos serões da Dª Elizabeth e do Sr. Coronel nunca mais foi a mesma. Nós, só tínhamos ordem de descer ao primeiro andar duas vezes por semana, para ver os episódios do “Homem Invisível” e do “Sangue na Estrada”, mas a casa passou a estar sempre cheia de gente que, apesar da pouca qualidade e da muita “chuva” das imagens a preto e branco, não tirava os olhos do ecrã e só arredava pé quando aparecia a chamada mira técnica e se ouvia o hino nacional que acompanhava o fecho da emissão. É claro que a esta assistência, não faltava por vezes a Sagrada Família, ali deixada horas antes pelo Sr. Lourenço, mas que a excitação das novidades televisivas fazia temporariamente ignorar. No entanto, na hora da saída, como se acometidos de um súbito arrependimento, todos esboçavam um ligeiro e apressado aceno de cabeça, em sinal de respeito e regressavam de consciência tranquila às suas casas.

O Sr. Joaquim

O Sr. Joaquim era proprietário da mercearia do bairro onde grande parte das famílias se abasteciam e algumas compravam fiado, pagando só no fim de cada mês, ou quando a largueza financeira o permitia. Não tinham ainda aparecido os hipermercados e as compras eram levadas à porta de cada freguês, pelos marçanos ajoujados pelo peso dos cabazes a abarrotar. Em casa do Sr. Joaquim, viviam não só a mulher, dois filhos e a sogra como ainda alguns dos marçanos a quem dava guarida em troca de trabalho. Nunca ficavam muito tempo e assim que podiam, arranjavam outro poiso, pelo que se imagina que as condições dos supostos contratos e do próprio alojamento não seriam as melhores. Certo é que a sogra do Sr. Joaquim, a Dª Conceição era quem tomava conta da casa enquanto ele e a mulher se ocupavam da loja e os netos iam para a escola. Durante o dia, o seu entretém mais frequente consistia em espiar todos os movimentos do prédio, quer através do pequeno ralo da porta da rua, que mantinha sempre aberto e lhe permitia saber quem subia e quem descia, quer por trás da janela, posto estratégico para manter vigilância apertada ao vaivém da mercearia e às movimentações da rua. Este ofício de espia ocupava-lhe a maior parte do dia e, como é óbvio, a manutenção da casa ressentia-se bastante. Por isso e apesar do seu piedoso nome, não era sem o credo na boca que o Sr. Lourenço abandonava a Sagrada Família aos cuidados, mesmo que temporários, da Dª Conceição.

O Sr. Lourenço

Homem de cinquenta e tal anos, de baixa estatura e barriga proeminente, o Sr. Lourenço usava um corte de cabelo que fazia lembrar o Sto. António. Talvez porque o seu perímetro abdominal não permitisse a utilização de cinto, usava suspensórios e vestia sempre o mesmo fato cinzento meio coçado, fosse verão ou inverno. Não era de muitas falas, talvez porque tivesse tido uma vida solitária e difícil, consequência duma viuvez precoce e duas filhas para criar sozinho. Depois das filhas “arrumadas”, decidira enveredar pela vida de sacristão e dedicar o seu tempo à igreja da paróquia.

A nossa casa

Apesar da subida até ao andar seguinte, onde nós vivíamos, lhe exigir um esforço suplementar, o Sr. Lourenço, não se queixava e, no seu íntimo, até procurava chegar nas horas de ausência da Dª Hortense e do Sr. Cruz
Sabendo embora que os fervores religiosos não abundavam em nossa casa, tinha a certeza que a minha avó Caetana era uma guardiã de confiança e que o oratório ficava em boa companhia, em cima da cómoda do seu quarto, junto da pequena lamparina de azeite que alumiava o Sto. António e a Nossa Senhora de Fátima, santos da sua devoção, a quem rezava convictamente sempre que surgiam problemas familiares mais intrincados ou quando chegava a época dos nossos exames escolares. Para resolver questões mais corriqueiras, a minha avó tinha, no entanto, uma táctica praticamente infalível que era atar a perna ao diabo: dava um nó numa tira de pano ou num cinto, à volta da perna dum móvel para “imobilizar “o diabo e fazer com que qualquer objecto extraviado aparecesse prontamente. Caso a coisa demorasse mais do que o previsto, recorria então ao plano B que consistia em rezar um determinado número de vezes o “responso” a Sto António. E só ela o podia fazer porque, na sua opinião, nós não o fazíamos com a convicção necessária. A minha mãe cujas práticas religiosas eram bastante intermitentes, olhava para isto tudo com a sua habitual condescendência. Mantinha-se ao leme da casa, tentando encontrar o equilíbrio possível entre as manias da minha avó, as casmurrices das criadas, as excentricidades do meu pai, as angústias existenciais da adolescência do meu irmão e as minhas permanentes invenções. Exercia a sua autoridade de dona de casa com discrição e zelava atentamente pelos nossos estudos e pelo bem-estar de toda a família. Era um pilar de bom senso, tolerância e afecto.
Mas o que realmente levava o Sr. Lourenço a procurar a nossa casa era a possibilidade, embora remota, de conseguir dar dois dedos de conversa com o meu pai que, além de horários imprevisíveis, tinha frequentes e violentas enxaquecas que o faziam regressar a casa às horas mais inesperadas. Apesar do meu pai ser agnóstico, ou talvez até por isso mesmo, o Sr. Lourenço adorava conversar com ele sobre os temas mais variados. Sabia que à volta da conversa, aparecia sempre um copinho de vinho ou mesmo um whisky, caso a hora fosse apropriada, e algum petisco com o qual reconfortava o seu estômago pouco habituado a mimos gastronómicos. Escolhia de preferência o dia em que ia recuperar o oratório, chegava um pouco mais cedo e ali ficavam os dois num lento bate papo até o Sr. Lourenço se lembrar, de repente, da sua missão ainda por cumprir e exclamar: “Ai que já é tarde e tenho que ir buscar a Sagrada Família!” Levantava-se dum pulo, despedia-se à pressa e lá ia, já aconchegado de estômago e espírito, levar o oratório de volta à sua morada de origem. Eu achava graça vê-lo afastar-se pela rua fora, com andar apressado e a balançar sob o peso daquela sagrada caixa de madeira.

O adeus

Depois do susto que apanhámos com o tremor de terra que fez ranger o prédio como se fosse um leão ferido de morte, o meu pai decidiu mudar de casa para um edifício moderno, duas ruas mais abaixo. Nunca mais houve vizinhos com quem conversar. Nunca mais houve saquinhos para cima e para baixo. Nunca mais vi o Sr. Lourenço nem a Sagrada Família. Cruzei-me com outras famílias ou com parte delas, mas que pouco conheci e com as quais pouco falei. Foi então que percebi que apesar de todas as famílias serem sagradas, há umas mais sagradas do que outras.

Isabel Almasqué
Março, 2019

Fotos de Isabel Almasqué

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Escrito por

Isabel Almasqué, Médica oftalmologista. Ex-Chefe de Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos. Ex-Secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Co-autora de vários livros sobre azulejaria portuguesa.

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Últimos comentários
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    Como sempre, um olhar agudo sobre a realidade à sua volta, numa prosa enxuta e genial, com rara (entre nós) subtileza e humor.
    Isabel escreve mais, escreve sempre.
    E as fotos? São por si só um filme de uma Lisboa de António Silva e Ribeirinho…só lhes falta falar.
    Isabel fala por elas..

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      Obrigada Yvette pelos seus comentários sempre elogiosos e amigos. Realmente, Lisboa nesta época era uma espécie de Páteo das Cantigas. Eu, que tenho a mania de guardar tudo, felizmente guardei estas fotos (e muitas mais) da minha infância. Como tudo mudou em tão pouco tempo!

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    Adorei rever esta Lisboa antiga, que desapareceu em tão pouco tempo. Não podia faltar nesta galeria de fotos a imagem da mesa com os três pratos empilhados (sopa, peixe e carne) de que já sou uma feliz possuidora da cópia. Agora falta-me a fotografia da cozinha que passo a encomendar para a minha colecção.
    O teu texto lembrou-me também que em casa da minha avó, em Castelo Branco, acontecia também essa vista da sagrada família. Rodava pelas casas uma caixinha de madeira, com uma pega superior, com as imagens religiosas no interior, que eram depois passada a outra família e que eu já havia esquecido. Obrigada pelas tuas recordações que nos sucitam outras.

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      Pelos vistos, estas Sagradas Famílias andavam sempre de mão em mão por Lisboa e não só. Eram os tempos da nossa geração. A foto da cozinha está prometida. E alguma outra que apareça.

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    Lendo o teu texto voltei à minha infância e encontrei tantos pontos comuns com a Lisboa que eu vivi.
    No meu prédio ninguém tinha televisão, mas o vizinho do rés-do-chão (não me lembro do seu nome) deliciava a vizinhança projectando, na parede do quintal, filmes a preto a branco , que nós “devorávamos” sentados à janela da marquise, no primeiro andar, onde morávamos.
    Obrigada por me teres proporcionado estas recordações. Adorei!

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      Isabel, obrigada pelo teu comentário. Ainda bem que te divertiste a ler e recordaste outros tempos. Era assim a Lisboa da nossa infância e adolescência . Assistimos à chegada da TV e até dos frigoríficos. Ninguém acredita!
      Bjs

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    O que me fica deste artigo da Isabel é o desejo de saber Quem é Quem.
    Quem são os dois cavalheiros da primeira fotografia ? Gémeos ? E o resto dos personagens, quem são eles ?
    De qualquer maneira disfrutei com prazer o linguajar da Isabel. Obrigado

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      Olá Zé Luis, obrigada pelo comentário. Como podes imaginar, não tenho fotografias desta gente toda de que falo. Portanto as fotos são da época mas são essencialmente de pessoas da minha família: mãe, pai, avó, irmão, tios, primos e alguns amigos. De facto, os cavalheiros da primeira foto são mesmo gémeos: o meu pai (o da direita) com a minha mãe e o meu irmão e o meu tio (o da esquerda) com a minha tia e a minha prima.
      Há duas fotos com a Dª Elizabeth, o coronel: e vários dos seus afilhados: uma em que estão à mesa, mesmo por baixo do parágrafo “as meninas do rés do chão e a última. Também aparece o coronel de toga (também era juíz) e cheio de medalhas. Quanto às outras, só com legendas…

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    O que é curioso é a semelhança entre a tua mãe e tua tia. São o mesmo tipo de beleza, quase que poderiam ser irmãs. Enfim, gostos gémeos….

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    Que viagem , Isabel! É um relato pessoal , que reaviva as memórias de muitos. É inspirador, porque fiquei com vontade de escrever sobre o meu prédio. Parabéns pelo texto.Obrigada pela partilha . C

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      Olá Conceição, obrigada pelo comentário. Ainda bem que o meu texto a inspirou e lhe deu vontade de escrever sobre o seu prédio. Então, força, vamos a isso. Escreva e mande-nos. É um bom tema para abrimos um Forum. Vá, mãos à obra. Bjs