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O meu Portugal

Suspeito que estou em Portugal quando o pobre só fala de futebol, o remediado vive obcecado com hierarquias sociais e o rico julga que a hermenêutica é uma doença venérea.

E quando todos acreditam que são as relações pessoais que permitem o singrar na vida, quando o saber tudo sobre os outros é forma superior de conhecimento, suspeito que estou em Portugal.

Num mundo de empregos vitalícios e sem saída, suspeito que estou em Portugal quando o funcionário, referindo-se a um colega promovido lá no ministério, rosna “ele foi convidado”, resignando-se impotente à manifesta superioridade da rede nepótica do colega.

Quando só o negócio permite uma vida mais desafogada, quando os nativos criam o adágio “só trabalha quem não sabe fazer mais nada” e se assiste à sacralização da “negociata”, suspeito estar em Portugal.

Quando a dor de cotovelo e a Schadenfreud dominam, suspeito que estou em Portugal. Mas quando nas periódicas e históricas revoluções do passado, esses sentimentos não resultaram em morticínios, SEI que estou em Portugal.

Quando o preconceito reina supremo, suspeito que estou em Portugal, mas quando enfrento o facto de que ninguém é morto por ser preto, muçulmano ou cigano, SEI que estou em Portugal.

o meu portugal

SEI que estou em Portugal quando um dos romances mais vendidos nos últimos anos, povoado de personagens femininas inacreditáveis, conta a história dum lunático que ama uma mulher casada sem ter ciúmes do marido, mas comete suicídio quando a apanha na cama com um pobre diabo.

Também SEI que estou em Portugal, quando alguém entra num autocarro apinhado de gente com um bébé adorável ao colo e todas as mulheres a bordo se põem a fazer boquinhas, a mostrar os dentes e a mandar beijinhos.

SEI que estou em Portugal quando me dizem que há anos, vindos das colónias, o país recebeu em poucos meses o equivalente a 15% da população metropolitana, sem qualquer perturbação da ordem social.

SEI que estou em Portugal quando os anos mudam a decoração do café da esquina, mas não mudam nem o dono nem os empregados, que se limitam a parecer mais velhos.

Quando há anos, no mercado, a peixeira me berrava insolente “Ó rico, olhe que tenho bom berbigão” debaixo do gáudio geral das outras peixeiras a “chucharem” comigo, sem qualquer respeito pelo jovem estudante a comprar sardinhas, SEI que estive em Portugal.

Quando me lembro dos cabarets de há anos, ambiente boémio com uma inevitável venda de bonecas à entrada para amenizar a crueza da troca monetária com as meninas da casa, SEI que estive em Portugal.

Quando me lembro de um Ritz Club há anos, instituição fóssil dos tempos áureos da segunda guerra mundial em que estava aberto 24 h por dia, com barbeiro e restaurante em funcionamento permanente, com o ballet de Erato no programa, um sujeito baixote e barrigudo de chapéu sevilhano, em poses de flamenco, citando bailarinas com 70 em média de idade, a artista de strip-tease velha e gordinha, respondendo com manguitos aos dichotes alvares da audiência, uma serenidade me invade o espirito porque SEI que estive em Portugal.

E quando o perfume de peixe grelhado misturado com o das tílias e buganvílias me despertam saudades fugazes num dia de sol deslumbrante, SINTO que estou em Portugal.

José Luís Vaz Carneiro
Novembro, 2013

o meu portugal
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Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Médico Hospitalar (EUA)

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Últimos comentários
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    Magnífico texto, José Luis vaz Carneiro ! Eu também soube que estava no De Outra Maneira quando tive a alegria de o ler.

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    Muito bem observado e com imensa graça!